Havia muita esperança, muito otimismo, muita alegria no Brasil de 60. Éramos, pela primeira vez, campeões mundiais de futebol. Não havia casa que não tivesse na parede a fotografia de um pretinho de 17 anos chorando no ombro de Newton Santos. Era Pelé, na Suécia.
Éramos campeões mundiais de basquete com a nossa primeira grande geração de jogadores de bola ao cesto, havia Wlamir "o homem que parava no ar", Amaury (já careca) e um pivô com essa jóia de nome: "Algodão".
Maria Ester Bueno, aos 19 anos, ganhava em Wimbledon e partia para Forest Hills, destinada a bater de raquete também nos americanos.
Principiava a ser notícia no mundo um brasileiro verdadeiramente de esquerda: Eder Jofre. Com a direita ele aparava, com a canhota punha para dormir os lutadores que tentavam impedi-lo, em vão, de ser o primeiro brasileiro campeão mundial de boxe.
Um time de futebol até então inexpressivo, em cujo ataque só havia um branco, começava a sucessão de shows que faria dele, também pela primeira vez no Brasil, campeão mundial inter-clubes : O "Santos".
O país vivia uma sensação de vitória, de realização.
Era um país alegre e tinha um presidente também alegre. Juscelino gostava de dançar, de rir, de fazer serenata, e ainda tomava aulinhas de violão.
Ah, tinha pressa, havia prometido um progresso de 50 anos em seus 5 de governo, e gostava também de voar. Inclusive como dizia uma modinha da época "mandava parente a jato pro dentista".
O "Sputnik" ainda fazia bip-bip no céu e Gagarin, no ano seguinte, vendo o planeta de longe pela primeira vez, diria interplanetariamente: "A Terra é Azul". Das armas, a competição EUA/URSS passava para a conquista (emocionante) do espaço.
João XXIII, que assumia o Vaticano para ser um "papa-tampão", surpreendia o mundo com iniciativas de modernização da igreja, com sua vinculação ao interesse dos pobres e dos trabalhadores, e com seu modo descontraído de viver e de falar, sem nenhuma prisão ao formalismo de seu alto posto. "O que gosto mesmo" diria o gordo Santo Padre a um grupo de crianças, "é comer uma bela macarronada, tomar um bom vinho e tirar uma soneca..."
Kennedy, Krushev e João XXIII eram os três homens mais importantes do mundo e ...maravilha! tinham senso de humor.
Havia humor no mundo, mas, por certo, nem tudo eram flores.
A África iniciava de maneira violenta sua guerras de libertação; Lumumba, do Congo, posteriormente traído e assassinado, era a figura de um novo herói no mundo: o herói preto, independentemente de ser artista ou jogador.
Em Cuba, passado o romantismo da revolução de Sierra Maestra, começava o processo traumatizante da primeira experiência socialista nas Americas. No Vietnã, nascia o Viet-Cong, que encheria o mundo de notícia, de dor e de morte nos próximos 15 anos.
No Brasil, dois moços então na faixa dos 30 anos, um do Sul, outro no Nordeste, mostravam as contradições e incongruências do nosso processo de desenvolvimento e falavam numa "revolução popular". Leonel Brizolla e Francisco Julião, este com uma novidade, as "Ligas Camponesas".
Dom Helder, então no Rio, era chamado pela imprensa de "O Santo das Favelas", por causa de sua "Cruzada São Sebastião", que pretendia melhorar a vida dos favelados. Stanislaw Ponte Preta batizara-o por isso de "Garoto Propaganda de Deus".
Ver um filme que estava escandalizando o Brasil: "Les Amants", com Jeanne Moreau, a fita sugeria cautelosamente, sem mostrar diretamente nada, uma cena de sexo com variação oral, que no Brasil tinha sofrido um corte de 15 minutos porque o ministro da Justiça, Armando Falcão, atendera às ponderações de Dom Helder Câmara.
Mas ainda não havia cinema em Brasília, muito menos os de sessão corrida a noite inteira. Não poderia ver nem "Les Amants", nem "Dolce Vitta" ou "Orfeu da Conceição", este, com história em ambiente brasileiro, tinha ganho a "Palma de Ouro". Enfim, não poderia ver nenhum daqueles filmes que, então, excitavam os homens do mundo todo com as "donas boazudas" tipo Jayne Mansfield, Lollobrigida, Sofia Loren, Marilyn Monroe.
O padrão da mulher sensual ainda não tinha nada a ver com a dietas e os regimes de emagrecer: Brigitte Bardot, "boazuda" na parte de cima mas já de perna fina, funcionava como "elo de transição" entre as mulheres de formas arredondadas e abundância de curvas para a mulher magra, ossuda e reta que viria depois, até desembocar no exagero de uma vareta inglesa chamada Twiggy.
Em 60, ainda, mulher que fumasse em público ou entrasse em carro estranho ficava logo mal falada. Mas quem tinha carro?
Só mesmo os muito ricos, ou cerca de 400 mil brasileiros numa população de 70 milhões.
A industria automobilistica brasileira havia nascido há pouco e, com isso, O DKW, o Volks, o Dauphine, o Simca, mais o incrível Romi-Isetta, de dois lugares e que parecia uma tartaruga não constituíam um décimo da nossa frota.
E havia ainda uma dúvida cruel sobre se os "carros brasileiros" iam dar certo. Alguém se lembra do Simca Chambord?
Era um modelo muito enfeitado e cheio de cores, curvas e incrementos. Tinha um belo e trabalhado visual, mas parece, jamais se "aclimatou" ao Brasil. Era quase tão bonito quanto difícil de funcionar regurlamente.
Millôr Fernandes, que já era o mais sério humorista brasileiro, quase fez o Chambord morrer antes da hora. Ele fazia semanalmente seu Pif-Paf na revista " O Cruzeiro", a qual, com tiragens de até 500 mil exemplares, significava para o Brasil (em termos de repercussão nacional) o que hoje significa a Rede Globo. Pois Millôr, com base na experiência com seu próprio Chambord, escreveu um dia:
" Se a Simca, usando know-how do Chambord, fizesse relógio cuco em vez de automóveis, o passarinho aparecia de costas e ia perguntar a hora ..."
Mas de carro ou a pé, a gente exercitava condignamente o doce esporte da paquera. Programa "supimpa" era ir a uma festinha e embalar a garota em doses seguidas de Cuba Libre (rum com coca-cola), Hi Fi (vodka com laranjada), ponche, ou qualquer outra "farmácia de embalo" da época.
O processo final de um bom trabalho de paquera, a chamada "execução", dependia da "garçonnière" de um amigo, de eventual "clube da chave", ou até, ainda, de esquivos corredores e portões.
Os hotéis pediam certidão de casamento (!), não havia motéis, nem carro, nem Pílula! Aliás, essa droga portentosa que iria instalar no mundo a "permissive society" acabava, em 1960, de ser liberada nos EUA. Mas ainda não fizera seus efeitos na brasileirada.
Mas, infelizmente, os tempos de JK estavam no fim. As eleições em outubro daquele ano indicariam um novo presidente, a campanha estava no auge, no Brasil todo, em 60, a política fervia e assava.
Dois eram os candidatos a presidente. Um do governo, meio a contra-gosto: o general Teixeira Lott. Homem bom, simples, generoso, patriota, mas eleitoralmente um "bonde" que nem o PSD e o PTB juntos conseguiam carregar.
Se o homem não falasse, podia até ser eleito, diziam; mas o que gostava mesmo era falar. Falava muito, de tudo, em qualquer lugar. Um livro sobre a campanha de 60 conta como era duro arranjar votos para o general.
Numa reunião com pecuaristas goianos, Lott entendeu de ensinar-lhes como resolver o problema da carne no Brasil. Depois de explicar (como se ninguém lá soubesse) que as partes de trás da vaca são melhores e mais caras, e portanto com grande valor para exportação, enquanto os dianteiros, sem perda de seu valor nutritivo, são menos valorizados, sentenciou:
"A solução para o Brasil é ficar com a parte dianteira e dar o traseiro para o resto do mundo".
O pessoal riu, a princípio cautelosamente, logo mais sem controle. E Lott, na sua simplicidade, continuou: "vocês estão rindo, mas é isso mesmo. Só assim resolveremos os nossos problemas.
Do lado da oposição, e incensado por todos os "mal-amados" do Brasil, vinha um furacão: Jânio Quadros.
A UDN fizera dele seu candidato pois antevira, com razão, que com ele, e unicamente com ele, teria chance de chegar ao governo.
Carlos Lacerda, de apelido "O Corvo", e ele próprio candidato a primeiro governador da Guanabara, tornou-se o seu garoto-propaganda. Em público, nos comícios, dizia:
"Jânio levanta em toda parte, numa nação espoliada e desgraçada, as derradeiras luzes da esperança para o Brasil". Em particular, dava sua opinião real sobre Jânio Quadros: "Um híbrido perfeito de Hitler com Macunaína ..."
Treze partidos políticos, treze! faziam campanha. De alguns hoje mal se sabe o que significavam: eram PSD, PTB, UDN, PRP, PSP, PSB, PL, PST, PR, PTN, PRT e PDC.
Empunhando sua vassoura, e enchendo de falsa esperança o Brasil todo, Jânio alcançaria um número de votos jamais ultrapassado no país: seis milhões.
Recebeu de Juscelino, no ano seguinte, a faixa presidencial para reinar por apenas sete meses. Teve tempo de fazer algumas coisas boas, e outra más; por aquelas ou por essas, teve em seu calcanhar, mordendo-o no miúdo e no graúdo, o mesmo Lacerda que o ajudara a elerger-se. O tempo foi fazendo esmaecer o que fez Jânio Quadros na presidência:
Um surto geral de moralização no funcionalismo, a proposta de uma política externa independente (como reaproximação com a URSS, condecoração a "Che" Guevara, missão na China e "abertura" para a África), uma política econômica de compressão, se não de depressão.
Ao lado de atos folclóricos ou pitorescos como a adoção do "pijânio" (um slack tipo indiano), as campanhas contra corridas de cavalos, contra o biquini nas praias, briga de galos e contra o lança-perfume no Brasil (agora temos que nos contentar com a importação da Argentina...).
Eis no que deu: seis milhões de votos para proibir o lança-perfume! Alem, é claro, de sua renúncia de sete meses ter aberto o caminho para tirar dos trilhos democráticos o Brasil que Juscelino, governando com abertura e fairplay, domara com tanto jeito, tanto progresso e tanta aprovação geral.
Houve um levante militar quando alguns oficiais, ligados à UDN, sequestraram um avião da Varig (foi o primeiro sequestro de avião do mundo) e fizeram uma base rebelde em Aragarças e Jacareacanga, de onde se dispunham a derrubar JK.
Passado o susto e o tropel do primeiro momento, Juscelino mandou anistiar incondicionalmente os revoltosos, que nem sequer perderam seus cargos e patentes nas Forças Armadas. E o mundo não acabou por isso; ao contrário, JK ficou até mais forte.
A imprensa de 60 não sofria restrições e, no campo dos jornais diários, mantinha praticamente o mesmo quadro de hoje. Desapareceram, de importantes, o Correio da Manhã e a rede Última Hora de Samuel Wainer, além da desintegração da parte-papel do império jornalístico de Chateaubriand, então no auge.
Na área das revistas semanais, imperavam em 60 Manchete e o Cruzeiro. Inaugurando o jornalismo semanal de reportagem, geralmente em duplas certas de repórter e fotógrafo, das quais a mais famosa foi a de Davi Nasser e Jean Manzon.
O Cruzeiro era realmente o maior veículo nacional, o que mais repercutia em todo o país. Fez de dois crimes do ano de 60, a "curra" e o assassinato de Aída Cury e o caso do "Tenente Bandeira", ambos com Tenório Cavalcanti de recheio, uma verdadeira novela que o Brasil seguia emocionado, capítulo a capítulo, toda semana.
E havia também "O Pif-Paf", de Millôr, escrevendo coisas assim:
"Dizia ela: como, só dez horas? o relógio bateu ainda agorinha uma pancada! - Dizia o maridinho: E o que você queria? Que batesse também o zero?!..."
Acabávamos de entrar na era do "jato-puro". Mas os aviões mais em uso, nas linhas domésticas, eram ainda o Convair, o Viscount (JK tinha um) e o Electra.
O "serviço de bordo" era ainda um chamariz meio mágico para se voar de avião, com a possibilidade de se conseguir, com as aeromoças, cigarros com filtro.
O filtro, com marcas que desapareceram, estava começando a entrar no mercado nacional, mas fumar "com ponta de cortiça" era ainda um recurso a ser buscado no mercado negro ou junto de alguém que estivesse vindo do Exterior.
Situação parecida com o radinho de pilha. Já televisão havia à vontade nas lojas, embora ainda se tratasse de um eletrodoméstico bem diferenciado. As famílias que tinham Tevê davam o maior ibope e, nas cidades do interior, o dono de um 23 polegadas, com poltronas na sala e café para os tele-vizinhos, só não se elegia prefeito se não quisesse.
Ainda eram necessárias antenas que mais pareciam torres de petróleo, era difícil acertar a imagem e mantê-la sem risquinhos, mas a TV, embora meio amadora e em processo de assimilar o pessoal do rádio e do circo, já criava seus heróis.
Não eram os da novela, pois a televisão ainda não descobrira a fórmula final para dopar e prender em casa o Brasil inteiro com sua armadilha de fantasias e de tele-lágrimas, o que só aconteceria em 64, com o ominoso Direito de Nascer.
Herói era aquele que ia participar de programas tipo "O Céu É o Limite" com o qual se criava o suspense, de uma semana para outra, sobre se iria "continuar ou desistir" num esquema de perguntas com respostas vinculadas a prêmios de milhões.
A TV se abastecia de programas de auditórios, musicais, gincanas, tele-teatros... \
Era tudo mais ingênuo, mais puro, mais simples, mais improvisado, pelo menos visto da ótica de hoje.
No ano de 60, um programa das 8 da noite, o sumo do horário nobre, alcançava pela primeira vez a marca de 65 pontos no Ibope. Sucesso absoluto!
Era o Rin-Tin-Tin, "sob o patrocínio de Colgate-Palmolive"...
O Brasil de 60 era assim.
José Hamilton Ribeiro