quarta-feira, 8 de março de 2023

BOM DIA ... ROBERTO DAMATTA 👇

 


Em 1881, Machado de Assis publicou, no inovador jornal Gazeta de Notícias, a Teoria do Medalhão. Nela, há uma descrição deste papel social que na cultura brasileira caracteriza pessoas importantes - figuras e “figurões” de projeção no meio sociopolítico (caso óbvio, aliás, de quem recebeu medalhas) - ou, como bem diz o Aurélio, “os indivíduos postos em posição de destaque, mas sem mérito para tal” (a multidão de amedalhados que não merecia medalhas).

O “medalhão” é um weberiano “tipo ideal” brasileiro que, a despeito de ser bem estabelecido, é oculto pela nossa miopia sociológica, incapaz de enxergar a dinâmica contraditória de um sistema social norteado pela rua e pela casa. Teorizando sobre essa hierarquia, Machado revelou mais do que a plêiade de intelectuais do seu tempo que viu (e continua vendo) o Brasil de um ponto de vista externo e formal - focalizando somente a política e a economia.

Na figura do medalhão, porém, vemos o Brasil menos como um campo de batalha de classe e mais como um conjunto de relações. Elos em que - citemos o Bruxo - o medalhão entra com sua teatral gravidade corporal, sua superficialidade, publicidade (hoje chamada de celebrização), ambiguidade política e vulgaridade, que fazem dele um perfeito mediador para uma sociedade entupida de contradições que as “qualidades” dos medalhões ajudam a sanar.

O medalhão, o “cara”, o “dono da bola”, o “salvador da pátria”, o “pai dos pobres”. Na sua sisudez hegeliana (que somente ele entende), ele personifica o velho salvacionismo e o populismo. Estruturas que reiteram a nossa incapacidade de resolver nossos problemas de dentro para fora; a nossa crença de que a saída (e êxito) vem de fora, de um estrangeiro, de um “Messias”...

A receita de Machado é uma bula para sair das tediosas ladroagens. No plano político, o estrangeiro que vira medalhão é uma figura recorrente. Devo lembrar Vargas, Jânio, os militares e Bolsonaro? Tal como a realeza que veio com o Rei Fujão, os de fora possuem essa aura mítica que faz parte do papel de medalhão como um consertador desinteressado do Brasil. Alguém capaz de conciliar a pessoalidade da casa com a impessoalidade igualitária das ruas.

Ademais, quem não quer ser medalhão para ser condenado a 400 anos de prisão num sistema penal no qual não há prisão perpétua? Talvez tais berrantes e consagradas contradições expliquem as razões estruturais para tantos medalhões e medalhetas pós-modernos. Sobre eles, fico devendo ao leitor algumas observações.