1982 - Kyalami : Estréia de Raul Boesel na Formula 1.
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"Ecclestone chamou Piquet de estúpido e irresponsável. O brasileiro pouco ligou."
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Para muita gente, até que foi bom negócio para Nelson Piquet sair direto, sem maiores consequências, na Curva Marlboro na terceira volta do Grande Prêmio da África do Sul. Afinal, depois de dois dias de tensões, 48 horas praticamente sem dormir, indisposição gerada pela exaustão e o enorme ruído no Hotel Kyalami Ranch na madrugada anterior à corrida, não há ser humano que aguente desempenhar performance pelo menos razoável.
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E foi o que se viu. Piquet largou mal, caiu da segunda para a 14ª posição e na terceira passagem já estava fora da corrida. Em uma curva acentuada ao final de uma reta velocíssima, as consequências poderiam ter sido trágicas. A mais de 300 Km/h sem os reflexos totalmente "em foco", é meio caminho para uma fatalidade. Imprevisível seria avaliar os danos que esta corrida poderiam ter causado ao campeonato mundial caso ele tivesse ficado mais tempo na pista.
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Marcamos um bate papo com Nelson Piquet para as 8 horas da manhã. O sol já estava forte e o azul do céu era total. A esta hora o salão de café mostrava mesas formadas por Gilles Villeneuve, Didier Pironi, Jacques Laffite, Eddie Cheever, os mecânicos e alguns privilegiados jornalistas italianos que conseguiram se hospedar no "hotel das feras". Não se notava, na fisionomia da maioria, cansaço ou falta de sono. Às 9:30, Raul Boesel apareceu na piscina ao lado de sua mulher. Estava tranquilo e também não demonstrava preocupação. Para ele, só o fato de largar na frente de seu parceiro de equipe, o experiente Jochen Mass, já era uma vitória. Sobre o "sururu", a greve dos pilotos, ele preferiu endossar a atitude dos mais experientes e entrou no bloco dos "rebeldes". Pelo menos, foi uma ótima oportunidade para em 48 horas, privar da intimidade de todos os pilotos que só conhecia como expectador.
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"A experiência foi maravilhosa, para mim que apenas chego à Formula 1, ter vivido 26 horas com os grandes da categoria foi muito bom. Conheci todos. Em apenas um dia fiz uma coisa que muitos deles em tantos anos de Formula 1 não tinham conseguido ainda: uma aproximação quase íntima e pessoal com os colegas." disse Raul Boesel.
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Depois do papo com Raul Boesel, como Piquet não aparecia, tentamos um telefonema para o chalé numero 148. Antes de sequer uma palavra, Sílvia, dileta companheira e vigia, urrava baixinho: " Não pertube..." e click, desligava o telefone. É claro, desistimos.
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A corrida mesmo estava em segundo plano. O motim liderado por Didier Pironi, com o aval de Piquet, era a palavra de ordem. Mesmo assim, Bernie não parecia furioso : " Os pilotos agiram de maneira estúpida e irresponsável, principalmente o Piquet, Pironi e Villeneuve. Há muito dinheiro circulando e os pilotos só ganham, não investem, não se preocupam, só se divertem. Setenta por cento deles não sabem o que está acontecendo. Inclusive, o próprio Carlos Reutemann me falou que não está entendendo nada e que se não existe um problema não há por que criá-lo". Bernie gesticula, pensa, mede as palavras e vai em frente: " O Nelson agiu estupidamente e, como campeão, deveria ser um verdadeiro líder e exemplo, impedindo que alguns pilotos, que pularam pela janela do hotel e foram agrupar-se, todos os 29, em um único quarto em outro local, passassem duas noites, sem dormir, discutindo sem chegar a qualquer conclusão sensata".
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A crise FISA/FOCA X GPDA foi sem dúvida o maior desentendimento político da história da moderna Formula 1, simplesmente porque pela primeira vez, patrões se aliaram a governantes e os funcionários, por sua vez, pareciam firmemente decididos a não permitir que esta poderosíssima aliança levasse a melhor neste confronto direto.
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O motivo da crise era a nova regulamentação para que os pilotos detenham sua super-licença para pilotar. Em maquiavélica manobra, a nova regulamentação das super-licenças foi levada a conhecimento público, inclusive dos pilotos, nas férias de final de ano, quando o mais difícil era encontrar alguém nos QGs da FOCA ou da FISA. Resultado: quem quisesse correr em 1982 teria que assinar um requerimento em que desiste de antemão a qualquer direito além do de pilotar. No caso, era ótimo para a FOCA, para a FISA e, muito ruim para os pilotos. Basicamente a nova regulamentação tinha os seguintes artigos:
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1-A FISA é que diz quem pode ou não, pilotar um F1
2-Só obterá a licença o piloto já contratado por uma equipe conhecida
3- Na super-licença fica designada a equipe de cada piloto, impedindo-o de trocar de marca em meio à temporada, sob pena de perder o direito de participar de qualquer GP. Enquanto as equipes podem trocar pelo mesmo uma vez de piloto durante a temporada.
4- O piloto fica impedido de criticar, sob qualquer aspecto, a FISA ou a FOCA
5- A participação de cada piloto verifica-se unicamente sob seu próprio risco, e nem ele nem seus herdeiros ou procuradores terão direito à ação judicial ou similar, decorrente de acidentes, fatais ou não em provas, testes ou treinos para cada GP.
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O primeiro piloto a tomar conhecimento desta situação foi Jacques Lafitte e, por conseguinte, o primeiro a não assinar seu "de acordo". Didier Pironi, presidente em exercício da GPDA assumiu oficialmente posição contrária e o clima esquentou em Kyalami. Na quinta-feira, dia do primeiro treino oficial, os pilotos se reuniram num ônibus e abandonaram o circuito, refugiando-se no Hotel Sunnyside. Os únicos a não participar do movimento foram Jochen Mass e Teo Fabi. Pironi foi o porta-voz dos amotinados e voltou para o circuito para negociar com Ballestre e Ecclestone.
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Diante do impasse, resolveram dormir no hotel. Como não havia quartos para todos, improvisaram um grande quarto coletivo, com todos os pilotos dormindo em colchonetes no chão. Gilles Villeneuve e De Angelis se divertiram tocando piano. Lá pelas 9 da noite, Jackie Oliver, chefe da Arrows, apareceu no hotel decidido a levar seu piloto, Mauro Baldi. Oliver deu um pontapé na porta, protegida por uma barricada de mesas sobrepostas, e tentou entrar. Acompanhado de um "leão de chácara", Oliver tentou agredir Jacques Laffite, mas ambos foram postos para fora.
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No dia seguinte os pilotos haviam obtido a promessa de Ballestre de que a discussão estava suspensa e ele revogou a regulamentação. Isso soou como vitória naquele momento, mas em outra prova de mau caráter, no exato momento da bandeirada final, fez revalidá-la, e ainda puniu, com multas e ameaças de suspensão, todos os pilotos presentes à primeira prova da temporada, com exceção de Jochen Mass e Teo Fabi, não participantes do movimento.
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O bom senso dos pilotos, no caso, não estava sendo questionado. O que Ballestre e Bernie exigiam tinha pontos discutíveis e amplamente desfavoráveis aos pilotos. Mas, talvez, realmente não fosse a hora...
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Em represália, Bernie Ecclestone obrigou Piquet a submeter-se a um exame médico e ai, só então, permitiu-o treinar. Antes, enquanto ele se negava ao exame, seus equipamentos ficaram à disposição de Riccardo Patrese. Resta saber se Patrese foi um dos que conseguiu dormir nestas 48 horas de vigília. Se dormiu, fez mal negócio porque acabou sendo mais lento que o insone Piquet.
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Voltamos na manhã da corrida. De bermudas, camisa de manga comprida com piadinhas picantes gravadas no peito (claro, em inglês), Nelson Piquet deixa o chalé e lentamente fecha a porta: " Sabe, não consegui dormir direito. Aqui é muito barulhento." Ele tinha a expressão cansada, carregada, falava como um disco fora de rotação, voz grave, marcha lenta.
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_O Bernie te chamou de estúpido, irresponsável. Explica esta confusão toda..._
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"Tudo isso é uma farsa da FOCA e da FISA querendo aumentar mais o poder sobre os pilotos. Querem mostrar mais e mais força, mas desta vez, tiveram que enfrentar um fato novo. A nossa união, a nossa força de pilotos que não querem mais ser subjugados. A greve foi a maior prova de que estamos atentos e unidos. Ficamos dois dias fora daqui, pudemos dialogar e desta maneira eles acabaram cedendo. por isso, e só por isso, a corrida vai ser realizada."
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Piquet boceja, olha para cima, gira a cabeça para o infinito, faz pose e procura coisa nenhuma em lugar nenhum. E volta a falar:
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" O Bernie tentou uma represália , contra mim. Coisa peculiar dele, um cara inteligente. Mandou pintar todos os carros com o número 2 e não me deixou treinar, exigindo um exame médico. Eu fiquei na minha. Eu sabia que na hora da classificação ele ia mudar de idéia. Porque , se ele me impedisse de correr, eu rasgaria o contrato e não haveria corrida no Brasil nem na Argentina. Com oito italianos suspensos também não haveria corrida na Italia. Acabava o campeonato. Mesmo assim, quando cheguei do exame médico, o Patrese estava dentro do meu carro, por ordens do Bernie. Ele queria me amedrontar, me punir, mostrar força para todo mundo. Azar. Com o carro inadequado e sem grandes ajustes fui o segundo mais rápido, um segundo à frente do Patrese, com o meu carro ."
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A corrida de Kyalami marcou a volta às pistas do austriaco Niki Lauda e do veterano piloto alemão Jochen Mass. Além dos dois, mais seis pilotos estrearam naquele ano: Raul Boesel na March, Teo Fabi na Toleman, Ricardo Paletti na Osella (morreu no GP Canadá), Manfred Winkelhock na ATS, Mauro Baldi na Arrows e o colombiano Roberto Guerreiro na Ensign.
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