terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Compra-se um automóvel



Por que não tenho automóvel ? Bem, já tive e vendi. Compra-se um carro já pensando em vendê-lo e sua possível desvalorização é um dos fatores determinantes da transação. Resultado: o que vendi em 1948 por 63 contos não consigo comprar hoje por 140, apesar do uso. Mas não me queixo: era um falso símbolo de prosperidade, responsável pela existência da maioria de meus inimigos, aqueles que dizem: não sei porque, mas não vou com esse sujeito.

Além disso, o carro me sujeitava a um ciclo de preocupações. Para começar, a gasolina que costumava acabar, exatamente, dentro do Túnel Novo, quando eu já me decidira a encher o tanque na volta.

Se havia alguém comigo, censurava-me a distração e eu me sentia esmagado pelo complexo de culpa. Se a vida da cidade se convulsionava pelo trânsito estrangulado, eu me sentia diretamente responsável. Cada inspetor de veículos era um carrasco pronto a abater-se sobre mim. O ruído de uma motocicleta ao meu encalço dava-me ímpetos de "gangster" e já me via em disparada, pneus cantando nas curvas, tiros esfacelando vidros, à minha frente o despenhadeiro.

E sempre havia alguém a meu lado. Daqueles que avisam delicadamente: "me deixe onde for mais fácil para você", contando que fosse exatamente à porta de sua casa. Principalmente se estivesse chovendo, e não sei por que diabo, sempre estava.

Havia também o demônio, manisfestando-se sempre na forma de um barulhinho conhecido por "grilo". Você está ouvindo? Será no motor? Alguma peça solta ? Não, ninguém ouvia senão eu, dono do carro. O "grilo" acabava dando comigo na oficina. Na oficina, o mecânico pronunciava seu diagnóstico que, em geral, era encerrado gravemente com as palavras "coroa" e "pinhão". São duas entidades medonhas, que nunca soube para que servem. Justificam sempre a conta de alguns mil cruzeiros, na condenação inexorável: se for na coroa e no pinhão, o senhor está perdido. Geralmente era.

O problema do estacionamento. Sempre era proibido, mas eu só descobria isso no momento de sair, pela delicada mensagem que o guarda deixava presa ao pára-brisa. Tornei-me leitor assíduo da seção "Verifique se seu automóvel está na lista". Se estivesse, tanto pior: eu não sabia o que fazer e saía à rua, furtivo como um criminoso à espera de que se abatessem sobre mim os rigores da lei.

Ao voltar, enfrentava novo dilema: guardar ou não guardar o carro? Se não guardasse, adeus pijama depois do jantar. Teria ainda de sair e acabava indo ao cinema para aproveitar a condução.

E os amigos se queixavam: você precisa mandar lubrificar este carro. Está bem, está bem! Vamos lubrificar. Quer que mude o óleo do cárter? freios? caixa de mudanças? mancais? número trinta ou quarenta? Cumprido o ritual das proposições alternativas, que me esgotavam de indecisão, saia do posto com o carro devidamente lubrificado. Logo me assaltava o primeiro carona: você precisa lubrificar este carro !

Em suma: melhor vendê-lo. Todo aquele que tem carro deve se desfazer do problema imediatamente. E aí, o cerne do paradoxo que informa as relações de compra e venda e o comércio da convivência: para que isso seja possível, todo aquele que não tem, deve pensar imediatamente em comprar.


Fernando Sabino, 1954

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(Fernando Tavares Sabino - 12/10/1923, MG - 11/10/2004, RJ - cronista, jornalista e escritor)