terça-feira, 21 de agosto de 2012

FANGIO, um cavalheiro perfeito




" Conhecido e respeitado na pista por suas qualidades técnicas, Juan Manuel Fangio também é tido por seus companheiros e adversários na mais alta conta pelo seu modo cavalheiresco de competir. Longe das pistas, o seu cavalheirismo mais se acentua pela maneira afável com que a todos trata. "


Estávamos a coligir dados e tirando conclusões sôbre as competições automobilísticas de 1957, quando certos detalhes esparsos se avolumaram e passaram a constituir matéria de importância.

Aclará-los sem o auxílio de uma pessoa que tivesse participado dos eventos seria demorado, senão impossível. Fangio seria o mestre ideal para o assunto.

Mas ...abandonamos as divagações para tratar da realidade. Nisso toca o telefone:

"Fangio está no Rio", diz o editor do outro lado da linha. "Trate de localizá-lo e consiga uma entrevista".

Transferido o problema de localizar o campeão mundial para a telefonista do hotel, recordávamos certa frase atribuída a Jayme Ovalle: "...um milagre, sim. É só acreditar em Deus e pedir com firmeza, que o milagre acontece..."

Enfim, a entrevista foi conseguida.

A nossa chegada ao Hotel interrompeu o grupo formado por Fangio e senhora, e mais três amigos que conversavam animadamente.

Feitas as apresentações, indagamos acêrca de início de suas atividades no plano internacional.

" Minha primeira vitória de caráter internacional foi obtida em 1940 na prova de estradas Grande Prêmio Internacional del Norte, que  compreendia o percurso Buenos Aires-Lima-Buenos Aires. No ano seguinte ganhei no Brasil, por ocasião da Prova Getúlio Vargas, cujo trajeto era: Rio, São Paulo, Barretos, Uberaba, Goiânia, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.

Parcialmente auxiliado pelo Automóvel Clube da Argentina, parti para a Europa em 1949, onde participei de dez provas e venci seis: Monza, Marselha, San Remo, Pau e Perpignan.

Retornando em 1950, a princípio corri com carros Maserati e Ferrari; depois, exclusivamente para a Alfa Romeo como membro da equipe até o fim das atividades esportivas dessa marca. Mercedes Benz, Ferrari e Maserati seguiram-se até o presente.

Quais os fatores que influíam na aceitação das diversas ofertas que lhe eram feitas? indagamos.

" Antes de mais nada, diz o ás argentino, a organização interna da equipe. Considero de grande importância as boas relações entre mecânicos e corredores.

Uma pista de corridas é um verdadeiro campo de provas e todos devem estar em harmonia para que o empreendimento seja coroado de êxito; além do mais, o público merece a consideração dos corredores. Não podemos decepcioná-lo. "


A ARTE DE VENCER

" Para competir com êxito, prosseguiu Fangio, é necessário um carro bem preparado e muito treino.

Quando vou competir em pista desconhecida procuro vistoriá-la tôda, marcando certos detalhes da mesma. Êles têm por fim me facilitar o caminho da prova, pois sei que, atingindo determinado ponto, devo agir desta ou daquela maneira, e não perco tempo em olhar para os contrôles do carro.

Numa corrida, as frações de segundos são importantes e devem ser empregadas no estritamente necessário como, por exemplo, no tirar a mão do volante para a alavanca de mudanças. O ideal seria que no momento em que se tirasse a mão do volante a mudança se efetuasse.

Tenho competido em diversos circuitos, mas considero Monza, sob o ponto de vista técnico e de instalações, o melhor da Europa; entretanto, tenho predileção pelo Circuito de Nürburgring. "

OS REGULAMENTOS DAS COMPETIÇÕES

Ninguém melhor que Fangio para falar das propaladas mudanças nas atuais fórmulas de competição, senhor que é de certos segredos.

" É necessária uma revisão nos regulamentos que regem as provas atuais. Não é possível que permaneçam para sempre restritos á capacidade volumétrica dos cilindros que nada mais significam diante de outros fatôres importante como a compressão, sistema de alimentação, combustível e ausência de limite de pêso.

Os carros estão se tornando perigosos, pois cada vez ficam mais potentes e mais leves pela utilização de novas ligas que surgem.

Sòmente uma regulamentação poria fim a êsse perigo, restringindo o pêso do veículo e capacidade volumétrica dos cilindros; seria uma complementação dos regulamentos que perduraram até 1937-38.

Um meio eficaz para reduzir as velocidades é a normalização do carburante. Os carburantes atualmente empregados são capazes de produzir imensa potência. Custam uma fortuna e seu segrêdo é uma das razões de sucesso para a equipe que tenha a melhor fórmula. Com a obrigação do uso da benzina, novas possibilidades abrir-se-ão para o desenvolvimento dos motores de carros de passeio, o que não acontece agora.

Acho também necessária uma uniformização nas leis que regem o desenrolar de uma competição.

Não é possível que um volante sofra a pena de desclassificação pelo fato de ter recebido apoio ou auxílio de terceiros em um contra-tempo qualquer. Os comissários de pista ou auxiliares da equipe poderiam muito bem correr em socorro de qualquer corredor, para contento geral.

Não é justo que uma equipe viaje longas distâncias e seja desclassificada pelo fato de um de seus componentes ter deixado a pista, e a ela não poder retornar sem auxílio. Seria uma injustiça, também, para com o público.

Aconteceu comigo em Casablanca; porém, safei-me graças ao auxílio de dois rapazes, apesar da interferência do comissário de pista. Comuniquei o fato à direção da equipe e prossegui. Na Argentina êste aspecto está superado; é permitido auxílio.


AS COMPETIÇÕES NORTE-AMERICANAS

Com o caso Clymer em mente, quisemos saber se não haveria um denominador comum que permitisse avaliar as qualidades dos volantes do novo e velho mundos.

" Como havia dito antes, não me interessa a questão financeira do caso Clymer. Se me fôr fornecido um bom carro, competirei nos Estados Unidos.

O meio de comparação entre as duas técnicas seria resolvido fàcilmente: americanos pilotando carros europeus, em circuitos europeus, e europeus pilotando carros americanos em pistas americanas. Fora disso é impossível por um fator básico: a fórmula de competição.

Os carros americanos são acionados por motores de 3000 cc com compressor,ou 4500 cc sem compressor; na Europa, as provas são disputadas em carros com capacidade de 2500 cc, sem compressor. "

Não satisfeito, abordamos a possibilidade de um carro europeu vir a ser construído especialmente para Indianápolis, a título de promoção de vendas para os produtos das classes Sport e Turismo. Fangio respondeu:

" A construção de um carro especial seria contraproducente em face do seu elevado preço e do fim a que se destina: uma única corrida. Se vitorioso, duas semanas depois seria esquecido e, além do mais, o público que frequenta Indianápolis não compra carro europeu. Melhor propaganda fazem os carros Sport, como bem prova a sua aceitação.


COMPETIÇÕES, FATOR DE PROGRESSO

" As provas automobilísticas, prosseguiu Fangio, influem grandemente na preferência do consumidor; haja visto o aumento de vendas verificadas pela Mercedes-Benz após uma temporada de vitórias. Entretanto, o lado mais importante é o desenvolvimento técnico. Quantas horas de experiências não foram poupadas com uma só prova automobilística?

É um banco de provas dos mais eficientes, como bem mostram as inovações técnicas, ligas metálicas e combustíveis empregados nos carros comuns. E os motores que hoje já atingem de 9.000 a 10.000 R.P.M.? As fábricas européias aproveitam  as lições aprendidas nas pistas para os se produtos; daí certas performances superiores às dos produtos americanos. "

Indagamos então ao ás argentino sôbre carros a turbina e uma possível contribuição dos carros de passeio para os de corridas. Fangio respondeu:

" Se houvesse uma transmissão automática de grande eficiência, seria muito interessante o seu emprêgo; ficaria eliminada a perda de tempo que ocorre na fase de mudança.

Experimentei o carro a Turbina da Renault, L'Etoile Filante. Corre bastante, mas não tem freios para suportar a velocidade que desenvolve. 

Disse aos engenheiros que, se conseguissem pará-lo ou reduzir sua marcha num curto espaço, por um meio qualquer, o seu uso seria uma maravilha. "

CORRIDAS DE AUTOMÓVEIS COMO PROFISSÃO

" As grandes fábricas sentem falta de corredores experientes, prosseguiu Fangio. Não é possível entregar a uma pessoa qualquer um carro que custa grande soma.

Incentivar as competições automobilísticas na juventude seria muito benéfico por duas razoes: desenvolveria o gôsto pela mecânica e manteria a mente dos jovens ocupada num empreendimento sério.

Todos os rapazes, em certa idade, ficam ávidos de aventuras; porém, na maioria, elas não são salutares e, muitas vêzes, levam à delinquência juvenil. As corridas de automóveis oferecem as sensações de uma aventura, tendo entretanto um fim benéfico.

Caberia aos patrocinadores de provas organizarem competições de acôrdo com as possibilidades locais dos candidatos. Para isso, a melhor fórmula a ser utilizada seria a mecânica nacional, limitada até motores de 3500 cc, que é mais acessível.

O auxílio das firmas comerciais seria de grande valia para os principiantes pois o esporte é oneroso. Durante muitos anos recebi apoio financeiro de um fabricante de trajes masculinos, em Buenos Aires.

PLANOS FUTUROS

Indagamos do campeão mundial se eram verdadeiros os rumores de abandonar as pistas.

" Estou com 46 anos, disse Fangio. Meus empreendimentos comerciais (representação Chevrolet e Mercedes-Benz, e uma fábrica de montagem de motonetas Vespa) exigem cada vez mais a minha presença.

Uma coisa, porém, é certa: não me será possível competir tôda uma temporada na Europa. Entretanto nada tenho acertado em definitivo para 1958. Os planos para a realização de um filme são verdadeiros; não sei ainda se participarei competindo em uma só prova ou mais.

UM POUCO DA VIDA ÍNTIMA

Muitas homenagens recebeu Fangio por ocasião da conquista do penta-campeonato. Qual a mais emocionante ? perguntamos.

" Sou um homem frio, tornou o campeoníssimo. Mas não pude deixar de sentir certa emoção quando, na Alemanha, para receber a medalha cunhada pelo Automóvel Club local, fui procurado por um rapaz que havia viajado mais de 200 quilômetros para ver-me. Abrindo um embrulho, ofertou-me uma taça, havendo nela gravada uma plaqueta historiando a minha vitória no Grand Prix da Alemanha e os dísticos da Maserati, Ferrari, Mercedes-Benz e Alfa Romeo. "

Lembrando o enrêdo do filme (apreensões das espôsas de volantes) que o ás argentino fará, perguntamos como a sra. Fangio encarava a profissão do marido.

" Não deixa de haver sempre uma preocupação; porém, quando nos casamos e já era corredor ..." respondeu o ás, com um olhar e um sorriso para a espôsa.

Estava chegando o final da entrevista. Muitas perguntas ainda havia a fazer. Mas, não seria justo interromper por mais tempo aquela reunião íntima.

Obtida a promessa de uma entrevista futura, perguntamos a Fangio que companheiros escolheria para uma equipe.

" Os ingleses, sem dúvida Stirling Moss, Collins e Hawthorn ".

Despedimo-nos de um perfeito cavalheiro: Juan Manuel Fangio é acolhedor e gentil.

E de uma simplicidade que é própria dos que chegam à fama merecidamente conquistada.